terça-feira, 18 de novembro de 2014

APARTHEID URBANO


Apartheid urbano
As superquadras do Plano Piloto em meio a verdadeiros parques

Brasília foi criada no âmbito de um surto desenvolvimentista do país, nos anos 1950, e seguiu no seu projeto, aprovado em concurso internacional, as melhores especificações para o estabelecimento de uma nova maneira de viver, integrada à natureza e de acordo com a civilização do automóvel que se estabelecia sobre nosso planeta.
Embora não tenha até hoje sido completado, o projeto das superquadras, que deveriam se agrupar de oito em oito em Unidades de Vizinhança (nunca implantadas), com escolas fundamentais e infantis em cada uma delas, integradas à uma Escola Parque e à um clube em cada Unidade de Vizinhança, deveriam mesclar a modernidade e autonomia das unidades habitacionais, com a integração de seus moradores, promovendo o convívio harmônico através da educação e do lazer coletivo, e saudável, através do estímulo à prática de esportes.
Nada disso foi implantado, por temerem as elites da época que se tratasse de um projeto socialista, deixando os edifícios isolados nas superquadras, e dentro deles a solidão dos seus habitantes.
Mais grave ainda foi a implantação das chamadas cidades satélites do novo Distrito Federal, construídas para abrigar os pobres, quando o Plano Piloto, a parte projetada por Lúcio Costa, ainda estava no seu início, cheio de quadras vazias que podiam abrigar os trabalhadores.
Mas, uma vez mais as velhas elites entenderam que a cidade projetada para ser uma vitrine do novo Brasil que surgia, não devia ser enfeiada com a pobreza em que viviam os trabalhadores e que o melhor era escondê-los dos olhos do mundo em outras “cidades”, bem distantes do explendor arquitetônico das obras esculturais de Oscar Niemeyer.
Estas cidades passaram a ser chamadas cidades satélites, pois orbitavam em torno ao Plano Piloto (considerado até hoje como a verdadeira Brasília), como o sputnik, primeiro satélite artificial lançado ao espaço pelos russos em 1957, orbitava em volta da Terra.
Muitas surgiram desde então. As primeiras foram o Gama, assentamento criado a partir do projeto hexagonal de MM Roberto, que participou do concurso internacional para a escolha do Plano Piloto (vencido por Lúcio Costa), localizado na antiga fazenda do Gama, cuja sede ainda existe, preservada pelo patrimônio Histórico. 


O projeto de MMM Roberto para Brasília previa 7 hexágonos.
Um deles foi implantado para formar a cidade satélite do Gama
 
Na mesma época surgiu Taguatinga, na saída sul da cidade, Sobradinho, na saída norte, também construída na fazenda de mesmo nome, e Planaltina, antiga cidade colonial e sede de município que ficou dentro do quadrilátero do novo Distrito Federal. Parte do seu antigo território, porém, ficou fora do novo DF constituindo o município agora denominado Planaltina de Goiás.

Av. Comercial de Taguatinga em 1958

Av. Comercial de Taguatinga atualmente
Logo após a transferência oficial da Capital da Republica para Brasília, em 21 de abril de 1960, o projeto de um deputado federal transformou o antigo acampamento de obras denominado Cidade Livre, em mais uma cidade satélite. A antiga Cidade livre foi riscada no chão pelo engenheiro Bernardo Sayão, na época chefe da NOVACAP, a Companhia Construtora da Nova Capital, estatal criada para construir Brasília. Eram apenas três ruas onde qualquer um podia chegar e construir, sem nenhuma licença ou projeto, de forma a facilitar o assentamento de trabalhadores que chegavam (os “candangos”) e as empresas que quisessem prestar serviços no local. A ideia era que após a inauguração da capital tudo fosse removido mas, por pressão dos comerciantes estabelecidos no local, a Câmara Federal aprovou um projeto fixando definitivamente o assentamento com o nome de Núcleo Bandeirante.

 A Cidade Livre nos seus primórdios
Os barracos de madeira foram obrigados, então, a serem desmontados e reconstruídos dentro de lotes demarcados ao longo das três ruas, agora denominadas de Primeira Avenida, Segunda Avenida e Avenida Central, nomes que permanecem até hoje. Essa reconstrução dos barracos seguiu uma rígida tipologia imposta pela Novacap, com modelos de dois pavimentos, para as lojas comerciais e térreos para as residências, semelhantes aos utilizados na Avenida W3 sul, no Plano Piloto.
Os que não quiseram permanecer no local ganharam lotes na W3 Norte, que acabava de ser asfaltada, utilizando a mesma tipologia arquitetônica.
Em seguida, já durante o regime militar, foram criadas as cidades satélites do Guará, grande conjunto habitacional construído pelo recém-criado Banco Nacional de habitação, o BNH, situado às margens da estrada que liga o Plano Piloto à Taguatinga, e a Ceilândia, cidade criada pela CEI, Comissão de Erradicação de Invasões especificamente para erradicar a famosa Invasão do IAPI e sua vizinha, apelidada de Morro do Urubu, situadas em frente ao novo Núcleo Bandeirante.
Posteriormente nos três governos de Joaquim Roriz, já nas décadas de 1980 e 90, foram criadas as cidades de Samambaia, vizinha à Taguatinga e Ceilandia, formando um gigantesco núcleo habitacional, e Recanto das Emas, entre a BR-40, saída para Goiânia e o Gama. Na verdade o governador Roriz (nomeado por José Sarney quando ainda não havia eleições diretas para governador do DF) usou a possibilidade de dispor de terras públicas do DF para distribuir lotes a migrantes de regiões circunvizinhas que ele estimulava a virem para Brasília, formando imensos currais eleitorais que o ajudaram a se eleger mais duas vezes governador após a nova Constituição de 1988.
Depois disso várias outras cidades ainda foram criadas, como o Paranoá, a partir de uma invasão existente no local, resultante de um antigo acampamento de obras e “regularizada” pelo GDF através de um novo projeto urbanístico. Muitos outros antigos acampamentos de construtoras, da época da Construção da capital, permaneceram ocupados e foram posteriormente regularizadas, como a Vila Planalto, próxima ao Palácio do Planalto, a Metropolitana e a Candangolândia, ambas próximas ao Núcleo Bandeirante, a Vila Telebrasília, às margens do lago paranoá, e outras, todas seguindo traçados urbanos projetados pelo GDF.

Núcleo bandeirante hoje:
Prédios colados com iluminação/ventilação feita através de poços

Essa profusão de pequenos assentamentos urbanos, no entanto, tem em comum um Código de Obras muito diferente do código do Plano Piloto, permitindo que um compartimento de permanência prolongada, como uma sala de estar, por exemplo, possa se abrir para um poço de ventilação de apenas 80 x 80 cm, formando aglomerações extremamente insalubres.

 Cozinha abrindo para poço de ventilação
Não bastasse a expulsão dos trabalhadores e a venda das superquadras para as incorporadoras imobiliárias, elevando o preço do m2 do Plano Piloto a um dos mais altos do mundo, a permanência de códigos de obras diferenciados no mesmo espaço urbano, diferenciando mais ainda trabalhadores de funcionários de alta renda e parlamentares que habitam a cidade planejada por Lúcio Costa.
No Plano Piloto ergue-se uma cidade de padrões internacionais, enquanto nas satélites, o código de obras diferenciado permitiu o surgimento de verdadeiras casbahs, aqueles amontoados de construções, típicos dos centros históricos das cidades árabes, com ruelas estreitas e habitações insalubres, num verdadeiro apartheid urbano.
Embora as satélites venham recebendo novos e grandes empreendimentos imobiliários, com padrões muito melhores, não se justifica a permanência de padrões diferenciados dentro da mesma unidade federativa.

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