quinta-feira, 30 de outubro de 2014

DESTAQUE

Nada como viajar

     Pois é, dizem que as viagens ilustram e neste aspecto não posso me queixar dessa vida, pois tenho viajado muito. Aliás, não me queixo da vida em nenhum outro aspecto, pois me considero um homem afortunado, pelos filhos e filhas, netas e neto que a vida me deu. Gozo de boa saúde e na idade em que estou continuo ativo e produtivo e, ainda por cima, reencontrei o amor.
     Mas numa dessas viagens fui parar num lugar realmente especial; a cidade de Faz de Contas.
     Interessante esta cidade onde tudo parece ser o que não é.
     Soube pelos antigos moradores, que durante muitos anos o município foi governado por um velho caudilho, conhecido como Coronel Pedra. Ele mandava em tudo, bem autoritariamente, mas a seu jeito cuidava da cidade e das pessoas, embora não perdoasse os inimigos.
     Como todo ditador (embora seu reino fosse minúsculo), vivia rodeado de puxa-sacos, que faziam de conta que o amavam e idolatravam (salve, salve), embora à boca pequena odiassem ter de submeter-se à autoridade do velho.
     Dentre eles havia um que sobressaía. Na verdade não era um homem, mas um cão, que vivia aos seus pés, lambendo-os, tentando agradá-lo de todas as maneiras em troca de migalhas, que o Coronel Pedra lhe atirava quando lhe convinha.
     Quando precisava que o animal demonstrasse sua fidelidade canina, o Coronel Pedra fazia de conta que o amava, lhe fazendo festas e permitindo que ele também fizesse algumas festas, mas mantendo-o sempre firme na sua coleira, submisso a seus pés.
     Assim muitos anos se passaram, com a cidade dominada pelo caudilho e um misto de amor e ódio ligando-o aos habitantes, que apesar de tudo viviam razoavelmente bem, desde que se rendessem ao seu domínio.
     Como um bom coronel das antigas, Pedra era um homem conservador, ligado aos herdeiros da ditadura militar que governaram a Bahia por décadas, sempre acompanhado por seu cão lambe-botas, que ao farejar qualquer oposicionista logo começava a latir, denunciando-o, para que seu dono se apressasse a incluí-lo na sua lista de perseguidos políticos.
     Muitos anos se passaram, sempre do mesmo jeito. A cidade que era tombada pelo Patrimônio Histórico, fingia ser conservada, pois uma outra ajudante do coronel controlava o escritório local do IPHAN, mesmo que não tivesse nenhum conhecimento técnico, espantando os poucos arquitetos que se aventuravam a trabalhar naquelas lonjuras, e permitindo que seus amigos e os do Coronel, demolissem todas as construções antigas, mantendo apenas as fachadas.
     Claro que os adversários do Coronel eram obrigados a seguir rigidamente as normas do patrimônio, sendo estritamente vigiados e fiscalizados, dentro do melhor espírito burocrático.


     A cidade também fingia ser um paraíso ecológico, encravada que era no meio de lindas montanhas, embora a prefeitura escondesse um imenso lixão à céu aberto em local distante dos olhos dos turistas e estimulasse por meio de sua Secretaria de Agricultura, o uso de agrotóxicos nas plantações dos pobres lavradores que viviam de suas lavouras, afinal os fabricantes desses venenos pagavam muito bem pela cumplicidade dos funcionários públicos.
     Assim tudo parecia no melhor dos mundos aos olhos dos visitantes, enquanto uma pequena elite, que se intitulava "O grupo", dominava os parcos recursos da prefeitura, sempre em proveito próprio, espantando qualquer aventureiro que ousasse protestar, sob o argumento de que eles eram de fora e não podiam se manifestar.
     Democracia e direito de ir e vir eram conceitos muito distantes daquela comunidade, que vivia mergulhada no atraso e na submissão, fazendo de conta que era feliz.
     Na cidade havia também muitos gays, mas todos casados com pessoas do sexo oposto, fazendo de conta que eram héteros, afinal era preciso preservar as aparências da moral e dos bons costumes.
     Mas como tudo muda neste mundo, chegou um tempo em que um desafiante conseguiu vencer o velho Coronel nas eleições. Era um jovem taciturno, cujas ideias ninguém conhecia direito, e que tendo experimentado o gosto ruim de ser oposição num Estado dominado por coronéis, conseguiu dividir o velho "grupo" local e vencer Pedra.
     De início muita gente se encheu de esperança, achando que o jovem seria o início de uma verdadeira mudança, mas logo perceberam que tudo não passava de novo faz de contas, na medida em que o velho cão que vivia preso aos pés do antigo coronel se passou para o lado do novo Prefeito, tornando-se muito mais agressivo, pois este, ao contrário de Pedra, não o mantinha na coleira, mas soltou-o para que ele acuasse e perseguisse qualquer um que ousasse desafiar a nova liderança.


     O novo prefeito era o Dr. Patifarias que, apesar de jovem, logo assumiu as rédeas do poder com os mesmos métodos do antigo coronel, com a diferença de que, não tendo talento para dialogar com o povo e negociar benefícios em troca de apoio, passou à perseguição pura e simples de todos que não aceitassem seu domínio, desviando todos os recursos da prefeitura para si e para o seu reduzido grupo, que logo passou a debochar do povo.
     Então os membros do "grupo" passaram a circular todos em reluzentes automóveis zero km, cujas prestações eram pagas pela prefeitura como se fossem aluguéis de veículos, que ficavam à disposição dos próprios donos, numa manobra que nunca era investigada pela justiça, pois Dr. Patifarias e seu cachorro solto, tinham muitos amigos por lá, que faziam de conta que tudo era normal.
     Logo Dr. Patifarias tratou de fazer seu pé de meia, comprando restaurantes em São Paulo, enquanto não apenas pagava a fidelidade de seu cão com festas, mas permitia que ele também fizesse suas festas, para alegria de todo o grupo.
     Assim, até hoje ainda Dr. Patifarias e seu cachorro solto dominam a pequena cidade de Faz de Contas. Enquanto o jovem prefeito vive viajando e nada fez até hoje pela sua terra, seu cachorro solto cuida de que as coisas se mantenham no lugar, farejando tudo, vigiando a todos e mostrando os dentes ao primeiro sinal de rebeldia.
     Ultimamente até resolveram se bandear para os lados do partido que representa os trabalhadores, fazendo de conta que são de esquerda para se aproximarem dos novos governantes do Estado e garantir seu apoio nas próximas eleições, afinal a velha política do Coronel Pedra está morta e enterrada.
     E assim a vida segue nesse estranho lugar, onde tudo parece ser o que não é. Mas como as viagens ilustram, pessoas viajadas como eu conseguem enxergar além das aparências mal disfarçadas e ver que por trás do faz de contas existe muita coisa errada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário