terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O Poema do Andarilho

Poesia da semana

O POEMA DO ANDARILHO


Para Nélida Pinõn

I
Menor que meu sonho
não posso ser
Mil identidades secretas.
Mil sobras, sombras, mil dias.
Todas palavras e tudo.
Barco de ambigüidade,
sôfregas palavras.
De todas contradições, desencontros,
dos contrários de mim,
andarilho da flecha de várias pontas, direções.
Dos outros seres
que também andarilham.
Pois menor que meu sonho
não posso ser
Andarilho
de ervas sutis
crescidas de noites luzes
becos latinos frêmitos Andes ilhas.
Andarilho
de santos falidos, feridos
de vaidade.
Dos frutos da segurança vã,
vã beleza de repente solidão.
Feitiços, laços, encantamentos.
Prodígios, Tordesilhas, ressentimentos.
Andarilho de perder pele, asa e uso,
mariposa da lua difusa do amanhecer.
Andarilho
de paisagens precárias do sentimento
guardado a sete chaves,
não fotografável,
nem desvendável em câmaras escuras, secretas torturas,
ou à luz de teus olhos surpresos, presos
nos meus olhos, ilhas.
Pois menor que meu sonho
não posso ser

Andarilho.
De insignificâncias magníficas colheitas do nada.
De tudo que ninguém se lembra
nem nunca escreveu.
De uma nuvem veloz reflexo de outra nuvem
andarilha nuvem do sul
de onde vem a luz,
andarilho.

Crescem em mim as palavras sensações mais estranhas
e andarilham.
Arrulho de palavra pousada ave
sobre um minuto de trégua e milagre do tempo
quando o sol se põe atrás do horizonte inquieto
do dicionário
e da dúvida:
armadilha.
na saliva na garganta
na palavra escrita primavera
na capa de um caderno antigo
do Grupo Escolar Polidoro Santiago de Timbó
andarilho de linhas esquecidas tortas velhas trilhas
datas de nascimento e burlescos aniversários
andarilho andorinha
em ziguezague na festa
na face de Deus.
Aos trancos e barrancos, andarilho.
De trincos e garimpos, andarilho.
Andarilho de desafios, desafinos.
De socos recebidos e raros revides,
de atonias em atrofias, andarilho.
Andarilho.
Na diferença palpável da volúpia.
De assédios, impertinências, ideologias.
De recalques,
decalques, vídeos, celulóides, fitas
gravadas da liberdade,
gravatas, contatos, contratos,
andarilho.
Pois menor que meu sonho
não posso ser.

II
Empoleirado em minha gaiola de ineficiência,
andarilho.
Longe de grandes e confortáveis salas
da subserviência, andarilho.
Transitivo, substantivo, adjetivo.
Solto na correnteza do medo, da instabilidade
de tudo, na multidão de afetos.
Eu, claro enigma: sete palmos de terra,
sagrado sopro de todo o sentimento.
Eu, quebrado espelho d’água de Narciso
e fogo de Orfeu entre a paixão
e o definitivo tempo.
Eu estranho a maioria das vezes
na própria terra do poema
onde me sedimento, acidento,
me desencaminho, me aninho,
me enovelo em trama de pouco, em menos,
em quase nada
e mesmo assim andarilho.
Pois menor que meu sonho
não posso ser
eu matéria recalcitrante do futuro.
Eu a nação inteira sob o impacto do sonho.
Eu dissecando a morte sobre a mesa da manhã.
Eu onipresente e diluído na dor geral.
III
Fechei meu expediente da comoção fácil.
Corretores da insegurança:
deixai a sala de frente da precariedade.
Atravesso jejuns, desdéns,
indecisões, hospedarias do tempo.
A luz acesa de hotéis bordéis pobres e mal cheirosos
suicídios alheios pleonasmos.
Atravesso anúncios
e antenas.
Os homens apressados do século XX
e sua matéria veloz de sobrevivência atravesso.
A rua que antes atravessei atravesso outra vez
e a praça onde contornei a liberdade
da palavra
e da liberdade.
volto a atravessar.
Pois menor que meu sonho
não posso ser
Atravesso cartazes de cinema
ofertas do dia de supermercados.
Estádios de futebol, sirenes que falam
de morte inventada em subterrâneos sombrios.
Atravesso lianas, liames, hienas, reconciliações,
pecados capitais e provincianos ais.
Atravesso manchetes
de maré cheia, crescente de vazantes mares,
absurdas frases e as mais absurdas caligrafias,
atravesso sentidos sem sentido nenhum, de repente,
onde me decifro e hieróglifo.
Vácuos, opalas, opalinas, vícios.
Mesuras, curvaturas, arbítrios, alienações.
Tudo atravesso.
Atravesso a casa dos ventos uivantes.
O assombro, a censura,
a navalha na carne.
Atravesso o crime perfeito, utopias,
as profecias todas do país das falas guaranis,
guaranás.
Pois menor que meu sonho
não posso ser
IV
Não afino com instrumento
que se toca à distância
Não proponho propostas de diluição
Não sou agente do vazio
nem de asas que o homem não tem
Se acreditais em sistemas de elocubração
Na gema brilhante do nada
Em recheio de palavras e sofisticados relatórios
Se acreditais em clara batida
nas panelas obscuras da prepotência
Se quereis teorias de mim
Se me quereis longe da paixão:
tirai o cavalo da chuva
Pois menor que meu sonho
não posso ser.
V
Passa o tempo.
Como passa, passou o tempo.
oh! frase feita,
inútil consolo e alívio.
Passo este tempo que me passa.
Passo pontos de interrogação, helespontos,
helespantos.
Passo a ponte, o poente.
Deliberadamente passo
mas sem pressa, passo
a passo.
Passo os fusos horários
e passeio entre o sonho
e as palavras.
Também entre as obscenas por decreto.
Pois menor que meu sonho
não posso ser.
VI
Atravesso compêndios, currículos, apostilas
de silêncio
e minha sombra pisada
por outra sombra
também feita de tudo
e nada
Atravesso simulacros
e arranco o lacre da palavra
Pois menor que meu sonho
não posso ser
atravesso o avesso
E meu barco de travessias
é a palavra terra
cercada de água por todos os lados
Pois menor que meu sonho
não posso ser
Estou do lado de lá da ilha
Aqui disponho de mim
e conheço meu próprio acesso
Aqui conheço a face inversa da luz
onde me extravio
e não cessarei jamais
Pois menor que meu sonho
não posso ser.


Lindolf Bell

Sobre o autor

É a partir de Lindolf Bell que a poesia catarinense recupera o teor de originalidade, legado por Cruz e Souza, e passa a sugerir algo novo. Não dita normas para o fazer literário, não restringe o campo de ação do poeta. Mas amplia, posto que, opondo-se a algumas teorias estéticas das vanguardas de 50 e 60, pressupõe a permanência do vínculo entre o poeta e o seu poema. Exigindo do poeta a divulgação direta com o público, tornando-se um intermediário vivo entre o poema e o seu consumidor, a poesia realimenta-se de suas atribuições originais de laudos e desempenho social.
Sendo essa sua orientação básica, a Catequese Poética, liderada por Lindolf Bell, possibilita a agregação de poetas das mais variadas tendências, num convívio sem conflitos estéticos.
Daí o uso de ingredientes que favorecem os efeitos acústicos e o ritmo, como a repetição e a reiteração. O convite à participação do público não se dá somente ao nível fônico e visual, mas igualmente, na sugestão contida na matéria tematizada.
Em Código das Águas afirma-se a trajetória desempenhada pelo poeta enquanto peregrino em busca da poesia ideal. A palavra, aí, é o instrumento capaz de apreender a essência do universo criado. O código das águas reelabora o ideário estético de Lindolf Bell, que tem a ver unicamente com o fluir irredutível, ininterrupto e inclassificável de sua poesia - águas - insubmissa a códigos, exceto o das águas, cuja, codificação nega a si mesmo, exigindo-se a mutabilidade, o dinamismo constante.

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