quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O COURO DOS ESPÍRITOS

DESTAQUE


O Couro dos Espíritos
      Acabo de ler este livro, de autoria da antropóloga Betty Mindlin, com a colaboração de vários narradores indígenas da etnia Gavião-Ikolen, de Rondônia, dentre eles Digüt Tsorabá, Sebirop, Catarino e outros (Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2001).
     O livro recolhe as visões do mundo e da espiritualidade, contadas pelos índios da etnia Gavião-Ikolen e tem como subtítulo; "Namoro, pajés e cura entre os índios Gavião Ikolen de Rondônia".
     Na verdade a leitura fez parte de uma pesquisa que estou fazendo para um trabalho de ficção histórica e eu queria entender o mundo do xamanismo indígena, do qual nunca tive a menor idéia, a não ser pelas coisas que aprendemos na escola primária, sobre Tupã, Jaci e outras figuras mitológicas, que não tem nada a ver com a realidade deste povo.
     Dividido em cinco partes, (1) Amor, (2) Aqui, o além, (3) Os seres emergem, (4) Do lado de cá e (5) Terra e biografia; a obra trás relatos dos indígenas, sobre cada um desses temas, na sua característica construção verbal, bem diferente das narrativas a que estamos acostumados, com começo, meio e fim.
     A narrativa indígena é muito mais linear, sem um clímax. Por isso às vezes se torna monótona para nós, não índios. Mas na medida em que conseguimos penetrar no seu cotidiano e, principalmente, no seu imaginário, vamos nos dando conta do mundo completamente diverso do nosso em que eles vivem.
     Não é à tôa que nossas civilizações são tão incompatíveis. Os índios não separam o bem do mal, nem o mundo espiritual do material da maneira como nós o fazemos, baseados na tradição judaico-cristã. Eles convivem diariamente com o mundo espiritual, que está sempre presente e é traduzido pelo Pajé, (wawã na língua gavião) para a tribo.
     O Wawã é escolhido pelos espíritos, que se comunicam com ele através de aparições, avisando-o de que deverá se tornar um pajé. Essa aparição se faz em forma de animais.
     Segundo os Gavião, existe um mundo sob as águas dos rios, não dentro, mas sob as águas, em lugares secos, onde habitam os goihanei, espíritos das águas, que vivem lá em aldeias, com suas malocas, tendo família, mulheres e crianças e levando uma vida semelhante à nossa.
Existem também os Garpi, que são espíritos dos céus. Eles comandam as criaturas aladas. Gorá é o deus supremo, que vive também nos céus. Os dzerebãis são seres da floresta, espíritos inquietos que vivem em movimento e podem fazer mal aos humanos, e os Paitxoei que são os espíritos dos mortos, de humanos que já viveram e morreram e que vivem também em aldeias separadas.
     A relação entre os espíritos e os animais é direta. Os goihanei controlam os animais que vivem na água, como os peixes, jacarés, etc. Os garpii (o duplo ii significa plural) controlam os pássaros e os dzerebãis dominam os grande animais terrestres, como a onça por exemplo. 
     Quando um índio encontra um animal que se comporta de forma diferente da habitual, significa que ele é um espírito encarnado, ou um espírito que entrou na pele (no couro) de um animal (daí o título).    
     Uma onça que não ataca, uma garça que pousa no telhado de uma casa, etc, são manifestações espirituais que prenunciam uma comunicação com o mundo dos vivos, feita através dos pajés, que são capazes de interpretá-las.
     Não é um livro fácil de se ler, principalmente para quem está acostumado com estórias com começo-meio-e-fim. Mas ao lê-lo, encontrei algumas dificuldades extras, que prefiro não comentar aqui, mas que posso chamar de perturbações e confesso, tive que suspender a leitura. 
     Não sei se esse mundo do xamanismo me afetou de alguma forma ou se foi apenas uma coincidência, mas o fato é que só hoje consegui terminar a leitura, depois de me refugiar em lugar seguro, cercado de gente amiga e pronta para me socorrer caso eu tivesse alguma coisa de extraordinário.
     Muito estranho para alguém como eu, de formação marxista (embora não materialista).
     Pra quem tiver curiosidade e predisposição, trata-se de uma obra muito interessante e reveladora e que nos mostra como estamos distantes do mundo dos indígenas brasileiros.

    

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