segunda-feira, 3 de junho de 2013

TRIBUNA ABERTA

      Caros leitores, recebemos da leitora Tamar Valverde um conto do Machado de Assis, e, resolvemos publicá-lo. Agradecemos sua participação Tamar.
           Participe você também do Blog O PAIZ, mande sua sugestão.


 Um Apólogo


Era uma vez uma agulha que disse a um novelo de linha:
- Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo ?
- Deixe-me senhora.
- Que a deixe ? Que a deixe por quê ? Porque lhe digo que está com um ar insuportável ? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
- Que cabeça, senhora ? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar ? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
- Mas você é orgulhosa.
- Decerto que sou.
- Mas por quê ?
- É boa ! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu ?
- Você ? Esta agora é melhor. Você é que os cose ? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu ?
- Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
- Sim, mas que vale isso ? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando.
- Também os batedores vão adiante do imperador.
- Você imperador ?
- Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisso quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana – para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
- Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco ? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais do que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte: continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
- Ora, agora diga-me quem é que vai ao baile no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância ? Que é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas ? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
- Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e é ela que vai gozar a vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam fico.
Contei esta história para um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária.

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