segunda-feira, 4 de março de 2013

DESTAQUE

Grande Sertão: Veredas
     Acabo de ler o romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa (Editora Nova Fronteira, Rio de janeiro - 2012) e, confesso, estou arrasado. Arrasado pela beleza da história, pela tristeza do seu final, pelo descortinar do que eram os sertões do início do século, pela maestria do autor em revelar sentimentos humanos, tão universais quanto particulares desta região do Brasil, situada às margens do grande Rio São Francisco, entre cerrados, chapadas, caatingas e veredas, como os sertanejos chamam os pequenos rios que correm entre os buritizais do cerrado.
     Quis o destino que eu fosse criado em Brasília, para onde fui com 9 anos, logo após a inauguração da capital, em 1960, e que viajasse muito com meu pai, para o interior de Goiás, onde ele tinha um loteamento em Corumbá de Goiás, e para o Rio de Janeiro, atravessando o norte de Minas.
     Cresci no cerrado, vendo aquele êrmo se transformar numa metrópole, mas ainda peguei os tempos de conhecer o atraso em que o povo vivia ali, com as velhas "papudas" nas janelas dos pquenos povoados, fruto da falta de sódio, que provocava o bócio, doença que faz crescer o pescoço das pessoas.
     Ainda vi as brigas políticas do interior de Goiás, num tempo em que o Estado era dividido entre a dominação de duas famílias, andei pelas antigas estradas de terra e conheci Pirenópolis, quando era apenas uma cidade perdida e distante.
     Depois , muito depois, vim para a Bahia, morar na Chapada Diamantina, também conhecida como o sertão de cima, e daqui fui muitas vezes para o Rio de Janeiro, atravessando o norte de Minas, desde a divisa da Bahia até Curvelo, região onde se desenvolvem as histórias de Guimarães Rosa.
     Pelo menos uma vez, vim de Brasília para a Chapada por Arinos, onde Goiás se encontra com Minas, passando pelas cidades de São Francisco e Januária, na beira do rio São Francisco, e também por Manga e Carinhanha, na divisa de Minas com a Bahia. Nesta viagem passei pelo Parque Estadual Grande Sertão Veredas, onde a história que acabo de ler é transcorrida, em grande parte.
     Coincidiu também, qua ando fazendo pesquisas para um trabalho que estou escrevendo, que se passa no interior da Bahia, com algumas ramificações no norte de Minas, ao longo da estrada real, ou como era chamado antigamente, o Caminho da Bahia, a estrada que ligava Ouro Preto às minas de ouro de Rio de Contas e Jacobina e a Salvador.
     Então, é como se eu conhecesse o terreno onde se passa a história.
     Também a linguagem de Guimarães Rosa, sempre dita tão difícil de ser lida e entendida, não é de todo estranha para mim. Primeiro porque já conhecia dele outra obra prima, o livro de contos Sagarana. Depois porque vivo na região onde ainda se fala, de certo modo, como no livro dele. Muitas coisas que devem soar estranhas para o leitor de outras regiões, para quem mora aqui soam familiares, embora a maioria sejam parte de uma linguagem em desuso.
     Até o curso de linguística que fiz em 2006, me ajudou a entender certos termos, do português arcaico, alguns ainda vigentes por aqui e outros derivados do espanhol. Como debuxo (desenho), certamente derivado do português arcaico e aparentado com a palavra espanhola dibujo.
     Mas a linguagem do livro, cujo significado nem sempre é muito preciso, como nas gírias que usamos, pode ser entendida muito bem no seu contexto. É a forma de construção de frases, as palavras meio truncadas, os termos arcaicos ou derivados de outros, como alguns verbos que não existem, derivados de substantivos, como no exemplo abaixo o verbo muxoxar, derivado de muxoxo.
     "e isso figurei mais por precisar de firmar o espírito em formalidade de alguma razão....eu mero me lembrava - feito ele fosse para mim uma criancinha moliçosa e mijona, em seus despropósitos, a formiguinha passeando por diante da gente - entre o pé e o pisado. Eu muxoxava,. Espremia, p'r' ali, amassava".
     Na norma padrão, o mesmo trecho talvez pudesse ser escrito assim:
     " e isso pensei por precisar firmar o espírito em algo razoável...eu apenas me lembrava - como se ele fosse para mim uma criancinha buliçosa e mijona, nas suas infantilidades, como uma formigunha passeando diante da gente, entre o pé e o chão. Eu desprezava. Esmagava, amassava."
     Não é tão difícil assim de entender. No decorrer do livro a gente vai se acostumando com essa outra norma, típica do sertão daqueles tempos, no linguajar dos jagunços.
     Sim, porque o livro é uma história de jagunços, numa época em que o norte de Minas, o sudoeste da Bahia e Goiás eram dominados pelos coronéis e pela jagunçada.
     Riobaldo Tatarana é o personagem principal que nos conta sua história, numa narrativa única, sem a interrupção de capítulos, ao longo das 608 páginas do livro. Não sabemos até o final, quem é o seu interlocutor, a quem ele conta a história de sua vida e do estranho amor que sente por outro homem, Diadorim, que conhece quando pequeno e reencontra na jagunçagem.
     Não se trata de um personagem gay, até porque o mundo dos jagunços é extremamente machista e conservador, e Riobaldo um homem que se havia muito bem com as mulheres. Mas um amor que cresce entre os dois, de forma surpreendente e incontida. A história desse sentimento incômodo e proibido é o pano de fundo para as escaramuças entre os chefes guerreiros que Riobaldo vai contando, nos passando também sua visão dos sertões e seu povo pobre e abandonado.
     A passagem em que ele e seu bando se perdem e encontram um grupo de homens que vivia num sertão tão profundo, tão afastado de tudo, que nem eles mesmos conseguem entender a estranha linguagem daqueles homens, que ele chama de catrumanos, que viviam abandonados à própria sorte, em cavernas ou ocos de casas, sem nenhuma noção do que fossem, tanto que quando eles lhes perguntam de onde vem, os jagunços respondem: do Brasil, como a querer dizer que aqueles pobres nem sabiam que pertenciam a um país. E logo a seguir encontram um povoado assolado pela varíola, isolado pelos outros, queimando seus mortos em fogueiras.
     Uma triste realidade do que era esse imenso vazio chamado sertão, que só foi povoado após a construção redentora de Brasília.
     A tentativa de Riobaldo de fazer um pacto com o diabo, para conseguir vencer seu inimigo, e sua ascensão à chefia do grupo, que o fazem perder um pouco a noção do bem e do mal, mas que, zelado pelo amor de Diadorim, reencontra seu caminho do bem, são partes muitos bonitas do livro.
     Mas nada comparado ao final, quando ele consegue finalmente vencer seu inimigo e perde Diadorim na batalha, quando só então se revela a verdeira identidade dele(a): Diadorim era uma mulher, pressentida o tempo todo por Riobaldo, mas rejeitada por ele, por não saber da verdade.
     Um final belíssimo e muito triste, diante da dor do personagem ao saber que podia ter amado e não amou, que perdeu o grande amor de sua vida, sem nunca ter amado.
     Riobaldo se afasta da jagunçagem, cai doente e quando se recupera pensa:
     "Sosseguei de meu ser. Era feito eu me esperasse debaixo de uma árvore tão fresca. Só que uma coisa, alguma coisa, faltava em mim. Eu estava um saco cheio de pedras".
     Essa é uma obra que todo brasileiro deveria ler. Não pensem que é muito difícil, porque vale a pena!


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